Hardware aberto para o desenvolvimento

Conheça o Caninos Loucos, programa de hardware aberto brasileiro, que acaba de formalizar parceria com a SBC

Quando nos referimos a FOSS – Free and open source software – sabemos do que estamos falando: um programa livremente licenciado para permitir ao usuário o direito de uso, cópia, estudo, mudança e melhoria em seu projeto, através da disponibilidade do seu código-fonte. O conceito ainda pode soar estranho ao mercado, mas é uma realidade para membros da comunidade Linux, por exemplo, que colabora, mundo afora, pelo desenvolvimento e aperfeiçoamento dos softwares.

Dadas as vantagens, a ideia de um software livre e de código aberto tem se disseminado pelo meio técnico e científico. Mas o que dizer da aplicação dessa ideia ao hardware? Estamos falando agora do FOSH – Free and open software and harware – e esse é o desafio do Caninos Loucos, idealizado pelo professor Marcelo Zuffo, da USP, projeto com o qual a SBC acaba de travar parceria com o objetivo de disseminar a ideia do hardware aberto no país.

Parece difícil, e é. “Diferentemente do software, com o hardware aberto eu não consigo fazer contribuições incrementais. Se eu faço parte de uma comunidade de software aberto, entro lá por algumas horas e faço contribuições. O hardware, pela natureza dele, isso não é possível. Tem uma hora que você tem que fazer a plaquinha e fazer o chip – e esse processo infelizmente é muito caro”, explica Zuffo.

E por que investir em hardware aberto? “Se você pega hoje um processador de última geração, você só consegue fazer software na camada superior do chip. Nas profundezas do chip, você começa a ter o chip travado por questões de propriedade intelectual. Pensávamos que alguém tem que começar esse processo no Brasil”, explica Zuffo. O investimento em hardware aberto pode colocar o Brasil em outro patamar de desenvolvimento.

 

Um pouco da história

Um dos apoiadores de primeira hora da ideia foi Jon “Maddog” Hal, um dos expoentes da divulgação do sistema operacional Linux, integrante do Conselho Linux Professional Institute, diretor executivo da Linux International e engenheiro de software. Na qualidade de membro do Conselho Científico do Centro Interdisciplinar em Tecnologias Interativas – CITI-USP, ele visitou a Universidade e provocou os professores a iniciar a produção de hardware aberto.

Como ainda não havia projeto, Zuffo foi até a Europa, dialogar com os fabricantes de hardware aberto, para propor uma parceria. O resultado foi decepcionante: “A resposta que tivemos foi ‘Esse projeto gera 250 mil empregos aqui. Se eu te der o projeto, esses empregos vão pro Brasil’. ‘Ué, mas não era aberto?’”. O motivo da negativa dos potenciais parceiros dá a dimensão do quão estratégica é a questão: ‘Ele é aberto com foco no desenvolvimento do nosso país’. Essa é a grande discussão: ou a gente contrata engenheiros e cientistas da computação, ou o Brasil não vai se desenvolver”.

O jeito então seria projetar no Brasil. O primeiro obstáculo era financeiro. O desafio inicial era de produzir 100 placas, a um custo de 50 dólares cada. Com recursos de uma chamada da Capes, foi possível projetar e produzir o primeiro transistor “aos trancos e barrancos”, como brinca Marcelo. De 100 placas, 70 funcionaram. “O mais legal foi que a gente aprendeu pra caramba, a projetar e a produzir. Porque a maioria das coisas que a gente produz aqui são projetadas fora”.

Com o aporte de empresas parceiras, a aposta foi dobrada: o protótipo acadêmico se transformou um produto mais maduro. A meta passou a ser duas mil placas, que foram distribuídas no Brasil em faculdades, comunidades de desenvolvedores, instituições federais de ensino, Senais, Senacs. Há também placas em Tóquio, Grécia, Argentina, Uruguai, Venezuela, Cuba. Em 2019, a iniciativa ganhou o Prêmio Mercosul de Ciência e Tecnologia, na categoria Integração.

 

Ventiladores pulmonares e parceria com SBC

O projeto não tardou a abraçar desafios maiores. “Estamos vendo aplicações incríveis”, avalia Zuffo. Uma das aplicações se deu justamente quando do momento de maior crise mundial, a pandemia de Covid. “Os professores da Poli se reuniram e disseram ‘precisamos fazer ventiladores’”. Não havia no mundo tecnologia disponível para isso, dada a demanda global. Mas ainda haviam mil placas, que foram o ponto de partida para a produção de mil ventiladores.

O equipamento foi aprovado em todos os ensaios – técnicos e clínicos – e recebeu certificação da Anvisa. Foram produzidos mil ventiladores, entregues para 300 hospitais em 200 municípios distribuídos em 15 estados. “Isso mostra o quão importante é ter tecnologia. É preciso ter acesso aos meios de produção e de projeto”. A concepção e o projeto levou 120 dias.

A concepção de produtos especificamente para a área de saúde apresentou novos desafios: “Se eu projeto um ventilador, boto na Anvisa, abro o projeto e um paciente morre [Enquanto faz uso de uma aplicação do Projeto], eu sou solidário [na responsabilidade jurídica]. Isso foi um balde de água fria na comunidade mundial, e muitos projetos foram retirados por conta disso”. O projeto também saiu mais caro do que o imaginado – apesar de que muito abaixo do preço de mercado – porque, no setor de saúde, todas as peças precisam ser certificadas.

O desafio hoje é fazer 100 mil placas, e a parceria com a SBC vem da certeza de que elas terão excelente uso nas escolas regionais, nos hackhatons e em outras ações da entidade. No GT criado, vai-se discutir a criação de empregos e a geração de valor para a indústria nacional, bem como aplicações que visam a melhoria da qualidade de vida – purificadores de água, máquina de irrigação e segurança urbana.

Participam do GT: Alfredo Goldman (USP – presidente), Carlos Eduardo Ferreira (USP), Claudio Machado Diniz (UFRGS), Marcelo Duduchi (FATEC-SP) e Mônica Magalhães Pereira. (UFRN). O programa, seus produtos e parceiros podem ser mais conhecidos no site https://caninosloucos.org/pt/